Fortaleza, 11/04/18.
Querida Paula, tudo bem?
Curioso ler em sua apresentação a respeito de nosso encontro que o
convite de diálogo venha por meio de um ponto, conectivo. Isso me trouxe uma
memória, com cheiro da borra de café que acompanha nossas trocas por Skype.
Memória de como nos conhecemos, há uma quantidade de anos que para mim já se perderam
no fluxo do tempo, em um curso de Pós Graduação em Campo Grande, eu, como
docente, e você, como estudante. Naquele tempo tive o feliz presente de
orientá-la e creio que nesse percurso bem mais aprendi do que ensinei. Afinal,
a educação e a arte incorrem nisso, não? Em um ponto de troca. O atravessamento
que você e as intersecções que você fazia entre design e dança, a partir da
improvisação, me proporcionaram, me moveram de tal forma que ao criar o braço
de extensão do grupo de pesquisa que coordeno, chamado Dramaturgia do
Corpoespaço, me parecia inevitável chamá-lo de Conectivo. Lembro-me de
consultá-la sobre este desejo, uma vez que o conceito de conectivo era
desenvolvido em seu trabalho da Pós e você, sem pestanejar, responder: “Sim!
Fique a vontade!”. Aquele sim não era apenas uma permissão, mas um convite para
estarmos juntas enquanto esta conexão fosse possível. E esse possível tem se
prolongado no tempo.
Foi criado o Conectivo Nozes, inicialmente na Universidade Federal de
Uberlândia e atualmente vinculado à Universidade Federal do Ceará. Porque
Nozes? Porque gostávamos de comer nozes e sempre brincávamos: “É nozes!” Este
era o espírito de nosso trabalho coletivo. O espírito do jogo, da brincadeira,
do riso, da comunhão, da informalidade das relações (sem perder o rigor do
trabalho), da democracia prática. Antes de ser docente ou de estar vinculada a
academia sou artista. Nunca acreditei na máxima de que o conhecimento para ser
legitimado deva estar na academia. Vi colegas de trabalho, revestidos de uma
retórica arrogante e elitista, ridicularizarem inúmeras vezes os modos não
formais ou não cultos de fala da língua portuguesa. Eu até gostaria de
acreditar que a maioria dos brasileiros não utiliza a língua culta por
preguiça, no entanto, se não formos hipócritas, sem muito esforço perceberemos
que isso ocorre devido à deficiência do investimento em ensino público que
vivemos no Brasil. Afinal, em um País onde os discursos são mais legitimados do
que as ações, interessa a uma minoria, que está usando o Poder de forma
corrupta e corporativista, garantir que a maioria não seja capaz de produzir um
discurso eloquente. E, claro, precisamos abafar o grito da periferia: É nóis!
Deslegitimar como se diz, nesse caso, também significa deslegitimar o que se diz.
E, decidimos, estando do lado de cá, deste “dentro” da academia que parece
tanto se fazer fronteira apesar de seu estado público ter por obrigação
rompê-la, afirmarmos que “somos nozes” que construímos as possibilidades de
pontes, redes, conversas, tecidos, texturas.
Sempre achei que as nozes da nogueira-comum têm um formato de crânio e
cérebro, como podemos imaginar com as imagens abaixo, roubadas da internet:
Fonte: mundoboaforma / Foto: hypescience |
Na mesma velocidade me aparecem metáforas, tais como: mastigar e digerir um cérebro, devorar inteligência, degustar conhecimento e gerar alta fonte de energia transformada em movimento criativo. Comer para se alimentar e gerar transformações compartilhadas. Tecido duro e mole. Rígido e flexível. Forte e frágil. Sem perder as nuances que atravessam esses percursos que transcendem a dualidade e escondem em seus recônditos camadas muito mais finas, detalhadas, complexas do que as radicalidades extremistas. Como acreditar no mito do lado esquerdo que determina a lógica e do lado direito que determina a criatividade e as artes, se a maioria dos artistas críticos que conheço se lançam para a esquerda em busca de uma perspectiva democrática?
Eu mesma já não me vejo direita e/ou esquerda, centro/periferia. Não me
vejo etiqueta. Me vejo fissura. Talvez
eu esteja até mesmo na fenda que se abre ao meio tentando buscar uma saída no
caos sócio-político vigente.
Pois, somos nozes. Nozes que trilhamos esses caminhos curvos, espirais,
incertos. Nozes que desenhamos os formatos. Nozes que mastigamos o próprio
pensamento para transformá-lo em ação e reformulá-lo nas intersecções que se
organizam no contato com o outro. Nozes de cá e de lá, do aqui e do acolá, nos
reconhecendo para o aprendizado mútuo.
O Conectivo Nozes já completa 8 anos, já trasladou de Uberlândia para
Fortaleza, já viajou para a América Latina, já publicou dois cadernos de
pesquisa, 4 livros (um deles bilíngue), dois documentários, circulou com um
espetáculo de composição em tempo real em vários locais do País, criou dois
projetos de extensão que caminham para sua sétima edição: Formigueiro – acervo
e memória; e Temporal – encontros de dança contemporânea e composição em tempo
real.
De lá pra cá eu e você, o Conectivo Nozes e o Conectivo Corpomancia
perderam um contato mais próximo em função das duras rotinas de trabalho, mas
nossos modos de pensar/fazer dança se mantiveram conectados, de algum modo. E
haveria a sorte de nos reencontrarmos de modo tão bonito, agraciadas pelo
convite de Renata Leoni e do Festival de Dança de Joinville, para falarmos de
um assunto que nos é tão caro: redes na dança. Colocamos essa roda pra girar
novamente. Em ciclo, como a vida.
Logo me pus a pensar nas palavras de sua carta quando você disse sobre
sua participação nas rodas circulares. O que significa se colocar em roda. Dia
10 de abril fizemos uma segunda ação deste ano de 2018 do projeto de extensão
universitária que coordeno : Temporal – encontros de dança contemporânea e
composição em tempo real. Esta ação era uma roda de conversa sobre
improvisação. O espaço utilizado para a ação foi um auditório e os quatro
convidados e o mediador estavam sentados à frente das cadeiras com um microfone
na mão, pois estávamos registrando a ação para disponibilizar para pesquisa,
posteriormente. Em determinado momento me perguntei: como sugerimos uma roda de
conversa em uma formação espacial dessas? E convidei o público para formarmos uma
roda metafórica a partir dos diálogos. Mas como você mesmo disse, o design nos
faz entender as coisas melhor. Talvez desenhar a roda com os corpos ainda seja
algo necessário para percebermos as possibilidades que ela contém.
Dia desses conversava com Seu Flor, um amigo biólogo, que é um poeta da
natureza, sobre minha preocupação com
meu jardim de cactos. Sim, tenho conseguido a proeza de matar cactos e
suculentas. Preciso ter plantas que tenham certa autonomia e que consigam
manter uma vida digna com muito pouco, pois como as deixo por muito tempo
sozinhas, elas não podem depender de mim para estar bem, ainda que eu leve água
e amor de tempos em tempos. Em todo local que eu lia sobre cactos estava
escrito que eles deveriam ficar no sol e tomar água uma vez por semana para
estarem bem. Pois, segui todo o manual. E os vi morrendo pouco a pouco. Já
entrando em certo desespero, decidi levá-los ao hospital, uma vez que esse
amigo mantém um jardim, uma estufa e uma incubadora de cactos. Ele perguntou
onde eles estavam. Expliquei que ficavam alinhados em minha sacada. Ele disse
que era o pior local. “Excesso de vento é o que mais mata cactos”, ele me
disse. “E, além disso, eles odeiam ficar alinhados, porque nesse formato perdem
energia. Eles gostam de círculos, porque nesse desenho, eles mandam energia uns
para os outros e se ajudam para manter-se bem por mais tempo. Por fim,
observando suas plantas, uns morreram por falta de água e outras por excesso.
Cada cacto se comporta de um jeito e tem uma necessidade distinta. Você não
pode tratar todos de forma igual, ainda que estejam no mesmo jardim.”
Essa fala me trouxe inúmeras reflexões. Não apenas sobre minha
incompetência botânica, que se resumia a nenhum conhecimento empírico e um
“achismo” ingênuo de que minhas leituras superficiais de google poderiam me
ajudar em algo (parece até que esses anos como pesquisadora de dança não me
ensinaram nada! Kkk). Mas também sobre como nós nos organizamos socialmente. É
preciso se debruçar para entender o outro, contemplar e observar para
compreender.
Com um espírito coletivo e curioso que me é inerente, sempre evitei me
incluir em territórios demarcados, sejam eles de ordem social e/ou
profissional. Estar com o outro, conhecer o outro, apesar das diferenças,
sempre foi o elemento motor da minha vida e da minha dança. Ao longo de meu
percurso, no entanto, os grupos sociais e/ou profissionais com os quais eu
convivia sempre quiseram, e isso ainda ocorre, me limitar a padrões, estigmas,
territórios, estereótipos e enrijecer minha atuação dentro destes containers,
seja como ser humano, artista, docente e/ou pesquisadora. Claro! Partimos
socialmente de uma lógica do pertencimento: é necessário pertencer a um grupo
para que você seja legitimado e/ou reconhecido. Afinal, é preciso estar em um
grupo para sentir-se parte de algo. Mas, e se eu não quero me fechar em um só
lugar? Onde fico? No limbo?
As situações que mais me trazem irritabilidade na vida são aquelas que
podam minha capacidade de ir e vir, que querem me aprisionar em algum local. Ou
aquelas em que sou desrespeitada ou vejo alguém ser desrespeitado por ser
diferente, pensar diferente, agir de modo diferente. De uns anos para cá tenho
pensado muito sobre o que é estar junto. E quais são as formas de estarmos
juntos. Percebi como estou o tempo todo buscando agregar, juntar gente
diferente, “estar com”. Quase um ponto de conexão, eu diria. E, nesse processo,
também percebi como este ponto é sempre quase e sempre frágil. Porque ele só é
um ponto. E a conexão não acontece se não houver outros pontos, que formam linhas
e que conversam com outros pontos, que vem e vão. Trabalhei por uns anos em um
local em que convivi com pessoas muito agressivas e onde os casos de assédio
moral eram recorrentes, não apenas comigo. Era uma prática quase que
oficialmente aceita. Parece que o entendimento existente era que para uma
pessoa se desenvolver profissionalmente, ela precisava deslegitimar e/ou
desconsiderar o que o outro fazia. Lembro-me do tempo que eu investia
desacreditando naquela realidade e me esforçando para que pudéssemos de algum
modo transformar aquilo em diálogo. Essa iniciativa foi vista como ingenuidade
e falsidade. Era como se para dialogarmos precisássemos pensar todos de forma
igual. Pensar diferente tinha o sinônimo de ser inimigo. Era apenas um trabalho
mas o design era de um campo de batalha
minado. E em todo campo de batalha, alguém ataca e alguém defende. O campo de
batalha não soma, divide.
Um dia, uma colega me disse: “você já percebeu quanta energia você gasta
tentando reunir pessoas que não querem se reunir?” O cansaço de meu corpo já
sabia disso, mas minha consciência ainda não havia se dado conta. “Porque você não usa essa energia para
produzir apenas com o grupo que quer estar junto?” Aquela fala mudou minha
perspectiva sobre as coisas. Era isso. Para se produzir arte é necessário
querer, é necessário ter o desejo, é necessário colocar energia nisso. Se
alguém está fora dessa vibração, o trabalho não cria espaço para se
desenvolver.
Sempre fiquei muito pensativa sobre estas questões, pois sou muito crítica
aos grupos fechados, especialmente os corporativistas, que com a justificativa
de reunir pessoas em que se confia para trabalhar, vão se confinando em
pensamentos fechados e ações territoriais, muitas vezes de forma consciente e
propositada e algumas vezes de modo inconsciente. Logo, tenho me
auto-questionado permanentemente sobre as maneiras de trabalhar, de criar e de
produzir. De uns tempos pra cá, no entanto, tenho começado a perceber que
tentar agregar pessoas que estão em estado de “não”, que se aproximam para
provocar segregações, para destruir (muitas vezes o que nem foi construído
ainda), é desperdiçar energia em uma discussão que não avança. É possível
trabalhar nas diferenças, quando os diferentes se propõem a olhar o que os une,
para avançar na construção de algo. Caso contrário, o que ocorrerá é uma
identificação constante das diferenças, que, muitas vezes, afasta os
envolvidos. E, quando digo isso, não digo em esquecer as diferenças. Pelo
contrário. Inclusive porque isso não é possível. Mas em olhar para elas de um
modo mais generoso, para que possamos aprender com elas e nos colocarmos juntos
em movimento pensante. Lembrei novamente da frase de meu amigo: “Cada cacto se
comporta de um jeito e tem uma necessidade distinta. Você não pode tratar todos
de forma igual, ainda que estejam no mesmo jardim.” Cada ser humano se comporta
de um jeito e tem uma necessidade distinta. Não podemos tratar todos de forma
idêntica. Lutar por direitos de igualdade social não significa pasteurizar cada
indivíduo em uma massa que atua de modo uniforme.
Desse modo, me parece que para estarmos juntos é preciso antes querermos
estar juntos, respeitando o que nos difere e nos faz únicos. E só podemos
construir outras possibilidades de relação, distintas das hierárquicas e/ou
verticais, se estivermos dispostos a isso. Disposição! E coragem, como sempre
dizem, Arnaldo Alvarenga e Angel Vianna. Este final de semana tive o prazer
indescritível de conviver com Angel ao longo de três dias intensos, e durante
um almoço, quando ela nos contava de algumas perdas que teve em sua vida, de
forma abrupta, ela nos disse: “eu divirto vocês e assim sou feliz. Me divirto
com vocês. Já perdi tanto, então sigo me divertindo com quem está aqui. Porque
a vida não é o que se pensa, é o que se faz.”
E para se fazer é realmente preciso coragem e disposição. Aos 90 anos,
com joelhos inchados, Angel ofereceu uma aula, fez uma aula, passeou, dançou e,
se despedindo do lindo festival de dança onde estávamos, em Juazeiro do Norte,
ainda iria enfrentar uma viagem de van, de aproximadamente 8 horas para
Petrolina, onde seguiria trabalhando. Mais do que resistir, ela resiste com
alegria, por amor ao que faz. Assim como resiste este evento onde estávamos, a
Semana de Dança do Cariri, organizada por Allyson Amancio e sua irmã Luciany
Maria. Assim, como vejo resistir o Temporal – encontros de dança contemporânea
e composição em tempo real, projeto que já citei aqui.
Bom... nesse contexto, comecei a entender que até para construir uma
outra realidade sócio-política, é preciso estar junto de quem queira atuar
nesse sentido. E talvez não seja todo mundo que esteja disposto e tenha coragem
de estar nesse lugar de convivência com o diferente, de respeito pela diferença
que o outro produz. Neste instante me pergunto: como organizamos as redes,
então? E, como você perguntou, em uma conversa nossa por Skype, é possível
saber quanto tempo dura uma rede?
Poderíamos pensar na estrutura de roda como processo metafórico para
essas construções? Como se forma a roda?
Quem está na roda? Quem entra e quem sai da roda? Quanto tempo cada um
permanece na roda? Nos damos as mãos na roda? Como nos damos as mãos? Decidimos
a quem nos damos as mãos no caminho? Como decidimos? Com que intensidade nos
damos as mãos? Para que lado giramos? Ou giramos para os dois lados? Em que
velocidade giramos conjuntamente? Como e quantas vezes mudamos as configurações
dessa roda? Quais os tamanhos dessa roda? Como produzimos energia em roda? E
inúmeras outras perguntas poderiam se desdobrar daí...
Para mim, o ato de se conectar com as pessoas demanda, sim, muita
energia, mas ele também pode produzir muita energia, dependendo de como essa
conexão se dá. E quando isso acontece e o fluxo se estabelece é realmente
saboroso estar nele. E é imprescindível nos mantermos conscientes desse
processo para não nos acomodarmos e, assim, estimularmos outros fluxos. É
importante abrirmos a roda para entrar ar, entrar gente, sair gente que ali não
deseja mais estar. Parece precioso fazer com que a roda se constitua pelo
desejo de estar junto. A roda não é uma imposição, é um desejo. Assim como as
redes. E a partir do desejo, geramos ações.
E nós? Que redes são essas que estamos tecendo? Beijo afetuoso na
alegria de começar a bordar com você.
Aninha.
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