14 de dez. de 2009

:: E num gesto de fúria subversiva/catártica, cantávamos juntos "a galopeira"

(13/12/09 - casa da Júlia e do Werther)
Foi o que me fez lembrar deste artigo que escrevi há um mês atrás:

Ultimamente venho me identificando com algumas frases que me soavam bastante externas como “gosto não se discute”, “há males que vem para o bem” ou “não coloque o carro na frente dos bois”. Ouvia as pessoas dizerem, mas eu mesma nunca os repetia, a não ser quando queria fazer referência satírica às frases que, aparentemente, são repetidas ao longo de gerações como que por osmose. Eu, artista da contemporaneidade, mantinha o meu “papel” de preservar a diferença e negar a tradição. Certo é que incorporei cargas históricas da sociedade que integro, ou ela que me engoliu, porque essas sabedorias vêm me fazendo um “baita” sentido, à medida que vou me deparando com algumas dificuldades e descobertas.

Será que aprendê-las e incorporá-las é um dos pré-requisitos da entrada real à vida adulta e determina o reconhecimento dos outros sobre nós enquanto gente? Quantas pessoas ao se tornarem pais ou mães repetem canções e movimentos de ninar que seus avós e bisavós também faziam para novos integrantes da família, ou já “deram uma banana” com aquele gesto que acompanha a ação para alguém que o incomodou, ou se deu o privilégio de conversar e rir “à toa”?

Esses exemplos são manifestações do folclore que não faz parte de um tempo pretérito, que não está extinto ou localizado nas florestas como o saci-pererê ou como o mãozão das matas da Nhecolândia. Eles são vivenciadas todos os dias, em diversas esferas da vida cotidiana e são atuais. As frases feitas, ditados populares, locuções tradicionais são exemplos de como o folclore é vivo tanto no meio rural como na cidade e é ressignificado por meios de comunicação de massa, por livros didáticos, além de ser repassado pelo tradicional boca-a-boca.

Assim como frases, os gestos, a corporeidade e a maneira como nos movimentamos e expressamos cotidianamente (ou também em festas) com o nosso corpo está relacionada às referências familiares ou às pessoas de estreita e constante convivência, como amigos, familiares, namorado, colegas de trabalho, apresentadores de programas de TV, etc. No que tange ao universo corporal, parece-me mais difícil barrar incorporações, até mesmo porque não aprendemos a racionalizar este tipo de aprendizado, por mais que soframos interferências de repressões sociais e educações do tipo “etiqueta” para regras de usos do corpo em espaços públicos ou para padronizar comportamentos em determinados locais e tempos. E como é difícil admitir e perceber que me gesticulo como a minha mãe, minha entonação para perguntas e o tom da voz são idênticos aos da minha irmã, ando e me porto durante as refeições do jeitinho que meu pai também convencionou se comportar.

Nesse contexto é difícil delinear contornos de origens espaço-temporais deste conhecimento e dos processos de educação e comunicação, mas estes fatores indicam que a cultura popular (estruturalmente definida como aquela que é transmitida sem o artifício de tecnologias de informação e sem sistematização racional) está presente na formação de indivíduos, na maneira de se relacionarem com fenômenos de seu ambiente e na criação de novos sentidos a partir de reorganizações do que já existe. E essa interferência não é somente linguagem é também corpo. A linguagem se faz carne na medida em que se compreende que mente e corpo são instâncias transitáveis. Mente não é tanto uma instância abstrata, e corpo uma instância totalmente física, assim como existe a possibilidade de dois mais dois não ser igual a quatro.

E quando o assunto envolvendo incorporações históricas e sociais no e pelo corpo se expande da expressão cotidiana para a criação artística, faz-se um transporte para uma arte que trata o corpo enquanto meio e mensagem, ou seja, enquanto emanação e transporte de significados que dialogam com a tradição mesmo enquanto inovação, negando e/ou a transformando.
A criação de sentidos no e por meio do corpo vai acontecendo por procedimentos metafóricos, nem sempre atingidos racionalmente, mas racionalizáveis. Na dança cênica existe o acréscimo dos desafios estéticos, da relação com um público e da criação de metodologia de trabalho, direção, interpretação.

Por não haver uma atenção direcionada ao corpo e por a dança, principalmente a dança contemporânea, seguir uma linha que tende à abstração e conceito, diferente das narrativas com início, meio e fim, a recepção desses sentidos muitas vezes é limitada. Um movimento leve, lento e indireto, por exemplo, o que pode significar? Eu o executo ou vejo em que situação? Qual é a sensação de flutuar? Se um/uma artista flutua a cabeça, qual o significado que dou à cabeça e qual o sentido acrescido por ela se movimentar dessa maneira? Se refere a pensamento? Por que localizo o pensamento na cabeça?

E por aí a dança vai tocando. Questionando, colocando em movimento sentenças e atitudes que vão se cristalizando e evidenciando a rede sócio-cultural em que nos apoiamos para nos comunicar e sobreviver.

Estímulos para a criação deste texto:
“A natureza do pantaneiro” – livro de Álvaro Banducci Júnior (editora UFMS, 2007)
“Chão batido” – livro de Marlei Sigrist (editora UFMS, 2000)
“Corpo e processos de comunicação” – artigo de Helena Katz e Christine Greiner publicado na revista Fronteiras (www.helenakatz.pro.br, 2001)
“Dos meios às mediações” – livro de Jesús Martin Barbero (editora UFRJ, 2003)
"Locuções tradicionais do Brasil" - livro de Luís da Câmara Cascudo (editora USP, 1986)
“Metáfora é carne” – artigo de Lenira Rengel publicado no livro “Húmus 2” (Itaú Cultural, 2007)
Vivência em dança contemporânea com o coletivo corpomancia
Vivência em vida e cultura cotidiana com a família Almeida Rosa

Artigo publicado na revista especializada em dança "Movimente" - projeto experimental de Karine Dias, orientado pela professora Dra. Daniela Ota - Habilitação em Jornalismo da UFMS, (dez. de 2009)

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