26 de out. de 2012

acariciar o vazio pra esperar o fim do mundo II


Quando meu telefone tocou em uma sexta de manhã era surreal demais pra ser verdade. "Alô, Camila? Aqui é a Renata Leoni". Camila sou eu. Naquele dia, alguém que tinha ido a um baile à fantasia dos formandos em Odontologia na noite anterior. Naquele mês, alguém que tinha recusado uma oferta de emprego em um jornal da cidade porque, depois de semana de atividade, tinha percebido que mesmo que tivesse recém terminado a faculdade de jornalismo, ali não era o lugar dela. 

Renata Leoni é uma produtora, diretora e intérprete muito conhecida na cena da dança de Campo Grande. Ela me propôs que eu fizesse a assessoria de imprensa dos espetáculos de dança do Conectivo Corpomancia, Cia. Dançurbana e Ginga Cia. de Dança, que foram aprovados pela Funarte e seriam produzidos pela Arado Cultural. Topei na hora. Eu não esperava o convite e aquilo era melhor do que eu podia imaginar. Era aquele o meu lugar: fazer a ponte entre o jornalismo e a dança, minhas duas paixões. No fim da conversa ela falou "Ah! E a Paulinha está grávida, então estamos procurando alguém pra dançar um dos projetos, o Inocência, e pensamos em você e alguns outros nomes. O que você acha?". Combinamos um encontro pro qual eu fui preparada pra conversar sobre assessoria, porque pra dançar os outros nomes certamente seriam escolhas melhores, afinal eu estava fora de forma depois de dois anos parada e não tinha experiência nenhuma em dança contemporânea a não ser em uma oficina do próprio Conectivo da qual eu tinha participado quando dançava balé. Mas durante o encontro com a Renata e a Paual praticamente só falamos sobre Inocência e elas pareciam convencidas de que eu cabia muito bem no projeto como intérprete. Topei na hora também. Eu sempre gostei muito do trabalho do Corpomancia e nunca tinha me imaginado sentada em um café com a Renata Leoni, a diretora brava da Ginga Cia. de Dança, a única companhia de dança profissional de Campo Grande que existia (ou pelo menos a única que eu conhecia) quando era aluna do Estúdio de Dança Beatriz de Almeida. E se a Renata Leoni e a Paula Bueno (que seria diretora do espetáculo e é uma intérprete/criadora que eu sempre admirei muito) estavam dizendo que eu podia dançar, eu não ia dizer o contrário. 

Na verdade a ideia me parecia atraente e esquisita ao mesmo tempo. O espetáculo estava sendo pensado a partir da leitura do livro Inocência, escrito por Visconde de Taunay em 1872 depois de uma viagem do autor à Mato Grosso do Sul. Teria três pessoas em cena - eu, a Renata e o Guilherme Leoni (filho da Renata). A trilha seria a música Summertime em várias versões diferentes. Faríamos pesquisa corporal no Kung fu. Estudaríamos as borboletas, os efeitos do açúcar no corpo, a questão da relação da mulher com seus desejos de 1872 até hoje, o tempo, o espaço e até a teoria da relatividade. Depois transformaríamos tudo isso em dança, em um espetáculo.  

Cada mínimo detalhe era um universo novo pra mim. Eu nunca tinha me envolvido com os bastidores gerais de um espetáculo. E o Inocência era aquele tipo de história onde tinham todos muito a ver. Pensei pela primeira vez em iluminação, música, cenário e figurino. Estávamos sempre juntos - diretora, intérpretes-criadores e até a assistente de direção e preparadora, Franciella Cavalheri, e a designer responsável pelo cenário e figurinos, Mary Saldanha. Os encontros começavam às oito da manhã, nas aula de Kung fu e Tai chi e terminavam ao meio dia, no ensaio. Preparar o corpo foi difícil. Pra mim era como se eu estivesse presa na minha liberdade, sabe? Em tudo mais que eu tinha dançado existiam passos - um vocabulário estabelecido e milhões de combinações possíveis. Mas ali, na dança contemporânea, o que estava em jogo era tudo o que o meu corpo pudesse fazer, qualquer coisa (que não fosse qualquer coisa). Aqui eu preciso fazer uma pausa pra agradecer a Maria Elvira Machado, que convidada pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, deu uma oficina que durou só uma semana, mas começou uma mudança 'pra sempre' em mim - obrigada, Mareu! Continuando, também era a primeira vez que eu dançava alguma coisa na qual a construção era diretamente ligada à minha própria personalidade. 

O processo aconteceu com uma dose enorme de paciência, carinho e respeito. A equipe, principalmente a Paula (com a ajuda do Jojoca na barriga, né!), conseguiram despertar em mim o que eu podia ter de melhor. A Mary sempre atenta aos detalhes e boa de sugestão, a Fran sempre preocupada tanto com nosso corpo quanto com nossos sentimentos. A Renata Leoni virou Rê, o Guilherme virou Nauth e eles provavelmente são as melhores companhias do universo pra se ter no palco e fora dele. O trabalho e o tempo transformaram o Inocência em espetáculo e a convivência da equipe em amor da melhor qualidade. 

No começo, os ensaios aconteciam duas vezes por semana, mas a relatividade do tempo foi apertando nosso cronograma e mais ou menos um mês antes da estreia estávamos ensaiando todos os dias praticamente até às 13h com vários encontros nos finais de semana também. Nos últimos dias antes da estreia eu estava muito cansada. Dividir meu tempo entre os ensaios e o trabalho na assessoria de imprensa de um núcleo de pesquisas indígenas em uma universidade estava complicado. Eu almoçava correndo e dormia pouco. Durante esses dias, eu confesso que até cheguei a pensar se valia a pena. A resposta veio logo na primeira apresentação em uma escola estadual de Campo Grande: vale muito muito muito mais. 

Pra mim, o espetáculo só foi resolvido de verdade durante a primeira apresentação. Foi ali em cena que eu entendi algumas coisas de um jeito mais completo. Com a repetição das apresentações (fizemos oito em três escolas diferentes no período de três dias e depois duas em teatro) eu aprendi que o espetáculo só é resolvido plenamente enquanto acontece. Cada apresentação parecia um dejá vu. Era como se eu já tivesse visto aquilo tudo e ao mesmo tempo estivesse vivendo pela primeira vez. E viver a dança é mesmo o maior barato. É sagrado, é a coisa mais prazerosa que eu já experimentei nesse mundo. Em cena eu estou tão dentro de um mundo cheio de sentidos, que de uma certa forma é como se o mundo real pudesse mesmo acabar. Exatamente nessa hora em que eu acaricio o meu mundo. Exausta, entregue, completa e, enfim, feliz.


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