13/06/18 (mas poderiam ser várias
outras datas em que ensaiei terminar esta carta e não terminei)
Querida Paula,
A quanto tempo não lhe
escrevo... Este hiato me fez recordar
como as cartas demandam atenção, cuidado e dedicação. Curioso... um tempo
dedicado a nós mesmos e ao outro, que fomos perdendo com a velocidade
enlouquecedora das novas tecnologias. Temos perdido o tempo de degustar, de
apreciar, de criarmos empatia e intimidade. Ou seja: temos perdido o tempo de
amar. Já não sei se esta é uma fala de uma precoce avó, que nem filhos teve,
com a única função de manchar com tinta nostálgica e cheiro de mofo este papel
branco, para deixá-lo em tom sépia. Ou se, do contrário, ainda mantenho alguma jovialidade
com pitadas de lucidez criativa e afetiva que me façam querer crer na
possibilidade de atualizar este mundo datilográfico, sem perder a capacidade de
olhar para os detalhes e aprofundar-me nas relações com alguma intensidade.
A vida e seus atravessamentos às
vezes nos afogam em turbilhões... Daí as questões são tantas e tão urgentes que
precisamos de silêncio para ver os fragmentos se reunirem novamente e pensarmos
qual o fluxo seguir neste momento. É preciso meditar, deixar os pensamentos
irem e voltarem. Sentei aproximadamente nove vezes para escrever esta carta e
os parágrafos pareciam não se alinhar. Até que pensei no próprio desalinhamento
da vida e das inexatidões que nos compõem, como você mesmo colocou na última
carta sobre sua experiência acerca do Corpomancia. Também lembrei do que você
havia dito sobre a confiança nas possibilidades que podemos construir e decidi
confiar no
risco e embrenhar-me na
escrita final desta carta sobre a qual não espere nenhuma lógica linear. Pois
bem, estas linhas são bem mais um emaranhado de questões, conexões, redes. Como
esta planta que encontrei na gravação do segundo videodança que estou
produzindo para nosso projeto/encontro.
Esta planta me deu alguma
esperança de que um emaranhado de ideias possa produzir alguma beleza e poesia,
sem a mínima ingenuidade de pensar que meu cérebro seja capaz de produzir
inteligência e exuberância similares a que a natureza nos apresenta.
Uma vez ouvi de uma amiga:
“Precisei ficar num quarto de hotel com você para entender como você funciona.
Teu pensamento é tão rápido que ninguém acompanha. Quando você fala alguma
coisa e todo mundo acha que você está sendo impulsiva, seu cérebro já deu uma
série de voltas, você já pensou por vários lados, foi e voltou, ponderou, e por
isso falou. Mas esses movimentos são rápidos, muito rápidos.” Fiquei debruçada
em suas palavras por um tempo. Já não tinha consciência disso, mas esse é um
treinamento que fiz durante anos para a composição em tempo real em dança.
Pensar enquanto ajo. Agilizar a capacidade de reflexão para tomar decisões em
cena. Logo conectei essa fala com mais duas frases que ouvi de outros dois
amigos. A primeira dizia: “Você é elemento fogo e chega sempre com muita
intensidade.” A segunda dizia: “Você é água que flui no tempo de maneira doce.”
Logo pensei que a intensidade fogo que me move constitui meu ânimo. Meu desejo
de ser, de dançar, de produzir vida de maneira criativa, de criar laços
conectivos. Mas se este fogo começa a se espalhar com muita intensidade pode
causar queimadas e queimaduras. É preciso dosar para que ele seja chama acesa,
ardendo desejos, mas que possa navegar como as águas para encontrar outros
paradeiros e encontrar seus fluxos.
Sim. Sou curiosa. A curiosidade é
o princípio da minha existência. A curiosidade é meu fogo. Ela me desloca, me
leva ao outro, me faz ter interesse pelo outro, por algo. A curiosidade me faz
criar. E logo me transformo em água para flutuar. A caminhar no mundo com os
olhos curiosos, sou provocada e provoco. Outro dia, um feriado, tive uma súbita curiosidade noturna e mandei
uma mensagem para um amigo que eu pensava poder discutir determinada questão
com mais propriedade que eu. Curiosidade não tem dia e nem horário. Ele me
respondeu rindo e dizendo: “Você, sempre questionadora...” Também refleti sobre isso. De uns anos para
cá tenho percebido como sou provocadora nos ambientes por onde passo. Nunca
tive esse ofício. Quer dizer, nunca acordei um dia e pensei: acho que serei uma
provocadora. A vida não se constitui assim. Fiquei pensando nessa trajetória: a
curiosidade vem acompanhada de questionamentos fundamentados (não gratuitos),
os questionamentos vêm acompanhados de provocações, as provocações
desestabilizam, as desestabilizações trazem novas curiosidades. Talvez aqui uma
parte do círculo se abra para tornar-se espiral, para criar outros possíveis e
não verdades absolutas. E isso é da ordem da composição em tempo real.
Compor em tempo real exige troca,
diálogo. É como a docência. Troca e diálogo exigem ânimo de todos os
envolvidos. Mas e quando não há ânimo de todos para que a troca ocorra? Parece
que vivemos um tempo em que os ânimos andam desanimados. Conversava com Dudude
Hermann outro dia sobre isto. Em nossas falas, e de tantxs outrxs profissionais
que conhecemos, reconhecemos a dificuldade de lidar com a docência e as
parcerias artísticas na atualidade. Parecemos viver um momento onde todos estão
“desistidos” e quando o outro está desistido, não há espaço para ninguém
entrar. O estado “desistido” normalmente se traveste de certa arrogância, de um
saber tão enrijecido e seguro (ou, melhor dizendo, inseguro) de si, que não há
espaço para o aprendizado, não há espaço para impulsionar novos ânimos. O
estado “desistido” é tão seguro da desistência que não abre espaço para a
construção conjunta. Construir dá trabalho. Construir junto, mais ainda! É mais
fácil reclamar, falar mal, apontar o dedo para o outro, do que exercitar a
alteridade, pensar com o outro, rever com o outro, trabalhar de forma ética e
sincera. Em nossa conversa, percebemos que este estado “desistido” vampiriza
aqueles que ainda têm ânimo e energia e os adoecem.
Neste sentido, comecei a pensar
sobre o ceder. O contato improvisação é ótimo para nos ajudar a refletir sobre
isso. Quanto ceder? Quanto não ceder? Quem cede o tempo todo? Quem não cede
nunca? Como quem nunca cede aprende a ceder? Como quem cede o tempo todo
aprende a não ceder? Como aprendemos a ceder e não ceder juntos? É possível? É
possível reconstruirmos referências conjuntas, nas diferenças?
Estas têm sido questões que têm
me permeado com alguma frequencia... em um período em que perdemos todas as
referências éticas e que transgredimos todos os limites, esquecendo de que eles
são necessários para a convivência social, o que nos sobra, além do caos, de
crises existenciais e de um vazio humano aliviado com ansiolíticos,
antidepressivos e entorpecentes?
Vejo nossa sociedade cada vez
mais adoecida e me parece muito sintomático que os bailarinos também estejam
adoecendo. Imagine! Se nós que supostamente lidamos com o corpo de modo sensível
cotidianamente, pensamos nas práticas de consciência corporal e estudos
somáticos, estamos nesse estado, imagine quem não construiu as mesmas
possibilidades na vida... Longe de pensar que somos seres especiais ou
melhores, mas em princípio, seria parte de nosso ofício cuidarmos do próprio corpo,
ou não?
Confesso que a situação
sócio-política em que nos encontramos, de total desorientação psíquica, me
atravessa com alguma força, me desloca do eixo e me causa tontura. Buscar a
verticalidade está cada vez mais pesado e difícil. Quero cada vez mais ficar
deitada, embora não consiga dormir. Talvez porque colecione alguns motivos para
não acreditar que tenhamos possibilidade de sair desse buraco negro. Não sei se
chamo isso de pessimismo ou realismo. A cada manifestação popular a favor do
fim da corrupção, entendendo que a solução para isso é uma nova ditadura; a
cada vez que vejo um funcionário público receber um salário sem cumprir as
funções que lhe são determinadas e ainda assediar moralmente as pessoas que
exigem dele o cumprimento de seu contrato; toda vez que vejo um estudante de
uma universidade pública não cumprir seus deveres mas exigirem uma série de
direitos; cada vez que tenho que ligar em uma empresa de telefonia reclamando o
valor da conta que veio errado e tardo muito em resolver; cada vez que não
consigo facilmente encerrar um contrato de serviço; cada vez que vejo gente
jogando lixo na rua e no mar; cada vez, cada vez... fico pensando se o governo
é um problema isolado ou se estamos realmente vivendo um momento de desistência
coletiva. O total abandono das possibilidades comunitárias. Talvez este governo
falido e corrupto realmente represente a nossa sociedade. Frase polêmica. Sim,
eu sei. Mas porque não temos o hábito de acompanharmos nossos governantes e
suas ações de perto no dia a dia? Porque apenas quando a Rede Globo anuncia
alguma tragédia fiscal começamos a acompanhar a política? Reproduzimos
discursos dos quais, a maioria de nós, nem sabe como são construídos e por quem
são construídos. Simplesmente tomamos um partido, como no futebol, e começamos
a torcer por ele ou contra ele, com toda gritaria e alegoria que podemos. Vestimos
até as blusas com as cores que os regem e criamos hinos, como nas torcidas
organizadas! São coisas que nos constituem e nem sabemos exatamente os motivos.
Ontem vi um bebê com a blusa de um time de futebol e pensei: meu padrinho me
deu uma camisa do Flamengo assim que nasci, meu pai me deu um disco com o hino
do time, quando eu era criança. Sou Flamengo roxo desde sempre e não sei nem o
motivo. Só visto a camisa e torço. Se já uma perversidade em fazer isso com um
time de futebol, que não deixa de estar entranhado em situações de ordem
política em nosso País, pense o que significa fazer isso com os partidos que
nos representam! Nunca podemos generalizar, porque as exceções existem, mas
olhar para um quadro que implica uma maioria neste sistema, é assustador.
Assisti ao filme O Processo e
tive a confirmação do que já sentia. Estamos em um jogo, onde o que menos
importa são as decisões coletivas e públicas. O que está em jogo são interesses
privados de ordem financeira, intelectual e da ganância pelo poder. A população
é apenas parte do jogo, uma espécie de backing vocal que dá suporte para o
protagonista cantar: tem que se manter controlada para não tomar a frente da
situação, mas tem sua importância na performance. O que importa é que a maior
parte da população torça para o candidato A ou Z, para o partido C ou D de modo
intenso, sem nem saber o motivo. Enquanto nos engalfinhamos entre nós, quem
está no alto poder se organiza para atender seus próprios interesses. E, claro,
como temos os micropoderes, que mantém esta mesma estruturação nas outras
camadas, temos muito com o que nos ocupar aqui por baixo. Estava conversando
com um amigo meu advogado e lhe disse: parece que a vida é só resolver
problemas gerados por gente desonesta. E ele me respondeu: Mas realmente é. Em
outras palavras, talvez este governo falido nos represente tanto que nos “absurdamos”
ao ouvir nos noticiáros o que ele é capaz de fazer conosco, porque, ao fim e ao
cabo, nos projetamos ali, e vemos com lentes de aumento, o que nós mesmos somos
capazes de fazermos conosco no dia a dia. De repente parece tudo tão sem
sentido. Mas sempre pensamos que a falta de sentido está apenas lá, né? Porque
aqui continua tudo igual. Seguimos sendo uma população que mente, que quer
tirar vantagens, que é desonesta, mas que se considera perfeita. Aí, nessa
hora, vem alguém e fala: mas é diferente furar a fila do supermercado ou
desviar bilhões. Sim, é diferente. Ninguém disse que é igual. Mas o princípio é
o mesmo: tirar vantagem, entender que eu tenho mais direitos que o outro,
pensar no mundo de modo individualista. Isso provavelmente significa que alguém
está reclamando daquele que desvia bilhões, mas na primeira oportunidade que
tivesse de estar no lugar dele, faria o mesmo. Porque nesse momento o que
estaria na sua frente não seria uma fila de pessoas, mas uma fila de cédulas.
Dentro deste quadro, como pensar
coletivamente? Como resistir a todo um contexto individualista, onde sempre o
outro quer que se pense nele, mas ele nunca pensa no que está ao seu redor?
Como encontrar pares que queiram também ouvir e não apenas falar? Como
encontrar pares que queiram construir conjuntamente? Para reencontrar a
vertical, tenho observado como posso tecer as redes que me embalem novamente
para um novo movimento. Buscando não desistidos que ainda queiram construir
ações coletivas, “apesar de”.
Tenho entendido que não é
possível manter o ânimo /fogo aceso quando o outro não deseja essa troca.
Desistidos precisam fazer o próprio movimento de reerguer-se, mas em sua
própria estrutura. É preciso colocar o abdômem e os apoios ativados. Caso
contrário, apenas soltarão seus pesos sobre outros corpos e os derrubarão.
Parece-me que, de novo, o Contato Improvisação teria algo para nos dizer aqui.
Para dançarmos juntos é preciso que os dois corpos estejam ativos para
entendermos como eles se movem, produzindo energia mutuamente.
Nesse sentido, o evento que
participei em Bacalar, México, Contact and Flow, me trouxe mais umas tantas
questões... a experiência foi muito forte. Trabalhávamos Contato Improvisação
boa parte do tempo na água e uma parte na terra. Lá eu não tinha desejo de
falar ou escrever. O que eu vivia não se traduzia em palavras. Quando algo me
atravessa, de fato, não desejo falar. Desejo vivenciar aquilo. As palavras
parecem não caber.
Comecei a perceber como tenho
falado ultimamente, embora tenha tido o desejo de me calar cada vez mais. Mas
essa necessidade de falar vem vindo de uma ação didática na tentativa de
comunicação com o outro, que está tão desgastada pelos processos de redes
sociais. Cada vez as trocas de mensagens são mais curtas e as pessoas presumem
mais o que as outras têm a dizer. Disso, se desenrolam diversos problemas de
comunicação.
No encontro em Bacalar ouvi
Andrea Scheel dizendo: “Não presuma. Esteja atento ao aqui e agora, ao que
ocorre.” Parece-me que aí estava a chave. Como estávamos tão presentes no que
fazíamos a comunicação se dava no lugar do sensível. As palavras não eram
necessárias. Eu não presumia o que o outro queria/desejava/pensava. Eu vivia
aquilo com o outro, escutando-o, percebendo-o. E, se ainda assim algo não
ficava claro, do modo mais simples e direto, só perguntava ou respondia a
questão que surgia verbalmente.
Talvez a gente ainda não tenha se
dado conta socialmente de como olhar para o outro, escutar o outro, faz com que
compreendamos muito sobre nós mesmos.
Joshua Wasem me ensinava a tocar
hang drum, em alguns momentos livres. Eu, sempre muita enérgica, às vezes não
conseguia medir a potência de meu movimento em relação ao instrumento. Ele me
olhava, sorria e dizia: Be gentle! (Seja gentil!) A água e hang drum foram me
ensinando pouco a pouco a medir o fogo que havia em mim. Ser gentil é resistir.
Ser gentil e resistir. Ser gentil para resistir. Pensava dia após dia, como ser
gentil em contexto violento? Ali me parecia descomplicado. Estávamos todos
envoltos por água, querendo ser água, em estado de água. Estávamos todos em um
espaço natural que favorecia a troca, a convivência, o diálogo. Mas era um
espaço/tempo suspenso, um período determinado, com as necessidades básicas
previamente supridas.
Ainda assim, não estava tudo tão
bem resolvido. Nas jams eu me questionava constantemente, por exemplo, sobre os
encaminhamentos que o Contato Improvisação tomou. Nunca tive a oportunidade de
estudar contato diretamente com Steve Paxton, mas trabalhei com alguns
discípulos diretos dele. Quando comecei a me tornar curiosa sobre esta prática
o que mais se seduzia era entender em seus princípios básicos a possibilidade
de ampliação da capacidade de estar com o outro, de perceber o outro, de
mover-se com o outro. A ideia de condução se borrava, na medida em que a
percepção e negociação dos pesos dos corpos ocorriam e os dois corpos em
contato necessitavam identificar-se como elemento uno que se moviam por algo
que era criado pelo elo, pela conexão, e não pela imposição de um corpo sobre
outro. Repentinamente, não apenas nas jams deste intensivo, mas em outras jams
de Contato que já participei, comecei a identificar um protagonismo de
processos de virtuose, nos quais as carregadas (liftings) se convertem no
assunto principal, em tom acrobático, com pares que se fecham entre si num
orgasmo dançante, sem abrir espaço para outros diálogos. Aqui se faz necessário
pontuar que não tenho nada contra virtuosismo ou manifestações acrobáticas, mas
entendo que já há outros espaços na dança que dão conta desses universos e não
me parece que eles coadunem com as origens ideológicas do próprio contato.
Em alguns momentos, assistir a
jams de Contato me trazem uma sensação de que estes espaços se tornaram mais um
espaço de experimentação, terapia ou produção de um prazer individual, do que
uma possibilidade de treinamento criativo. Muitas vezes eu observo os
participantes se fechando em si mesmos e reduzindo a sensibilidade para o
outro, ao invés de expandir a percepção e o olhar para o outro. Em alguns
momentos vejo se delinear quase uma espécie de seita, onde alguns se consideram
avançados e, portanto, superiores aos outros e, de modo geral, só querem dançar
entre si. Em vários momentos vejo pessoas que se tocam mas não estabelecem
contato, o que me parece um contrassenso com a proposta inicial do Contato.
O que mais me interessava no
Contato era identificar em sua filosofia a generosidade, a dissolução do poder
de um corpo sobre outro, a produção de uma ação mútua e consentida pela
relação, com a consciência do corpoespaço (seu e do outro). No Contact and Flow
parecia que a água trazia estes princípios de volta. A água, de certa forma,
nos faz diluir este estado hierárquico, de poder. Ela nos leva, nos conduz, nos
coloca em outro estado, nos tira do controle. É fluxo.
Um dia dancei com Joshua na água.
Era como entrar no vácuo. Sentir-me vácuo. Estar vácuo. Ser vácuo. Perdi
qualquer referência, por estar vulnerável, mas os sonhos não me abandonaram. Eu
e Joshua nos olhamos durante muito tempo após a saída da água. Quando saí minha
sensação era de estar realmente só. Talvez porque hoje tenha percebido que
passo muito tempo cuidando do outro, sustentando o outro. E aqui, a água cuida
de mim, me sustenta. Meu corpo é água. Sou cuidada. Retomar essa sensação do
cuidado com o outro que temos perdido enquanto sociedade, me parece essencial
para reencontrarmos o ânimo. César Rendueles, no livro Sociofobia: mudança
política na era da utopia digital, escreve, na pág. 194: “[...] a ética do
cuidado é fecundamente política. Não porque a política se pareça com as
relações familiares: em um sentido importante, é justo o oposto das relações
familiares. Mas sim porque, no terreno dos cuidados, é evidente até que ponto
as normas que assumimos nos transformam em pessoas que podem aspirar ser de
outra maneira e por vezes só podem fazê-lo conjuntamente. A democracia não pode
ser fragmentada em pacotes de decisões individuais porque está relacionada aos
compromissos que nos constituem como indivíduos com algum tipo de coerência, um
passado e alguma expectativa remota de futuro. E essa é uma realidade
antropológica incompatível com o ciberfetichismo e a sociofobia.”
É realmente curioso perceber como
novas relações presenciais atravessadas pelas virtuais vão nos fazendo perder o
sentido do cuidado, de alguma maneira. A velocidade instantânea não gera
conteúdos de aprofundamento, que exigem tempo e paciência para ler, para
compreender, para analisar, para conhecer. Diferente daquele tempo de rápida
resposta da composição em tempo real, em que treinamos para ter agilidade na
leitura do contexto e na percepção das situações, esta velocidade outra da
tecnologia incita uma manutenção da superficialidade e nos instiga a leitura
descontextualizadas ou sitiadas em contextos semi-controlados (nossos contatos
de redes sociais que são estabelecidos apenas por zonas de interesses afins).
Nas redes sociais aprendemos a buscar os iguais e banimos os diferentes, cada
vez mais fortemente. Estamos perdendo a capacidade de conviver com o diferente.
Nestes dias que voltei minha
atenção para a natureza e que pude dançar durante dez dias em uma lagoa de
preservação ambiental, fiquei pensando em como necessitamos voltar às nossas
origens naturais, porque elas nos ensinam a viver. Não há melhor espaço educacional
e artístico do que a própria natureza. Pensei em quantas e quantas vezes
avançamos na natureza sem percebê-la, de fato. Nestes dez dias, era preciso
termos o cuidado de como ser este espaço. O que já estava ali antes de nossa
chegada? Como pedir permissão para entrar. Cuidar. Ouvir. Ver. Contemplar.
Estar com. Como perceber os diferentes e os semelhantes e como estabelecer esta
convivência? Estas nuances foram se expandindo para as relações entre os
bailarinos que ali estavam. Gradualmente fomos estabelecendo este espaço de
cuidarmos uns dos outros. Fui percebendo como a vida fica mais leve quando cada
um para de pensar em si e começa a pensar em si na relação com o todo, quando
há respeito mútuo, quando se entende que para ser respeitado é preciso, antes
respeitar a si mesmo, ao espaço e ao outro.
Da mesma forma em que encontramos
parceiros para dançar, para conversar, para sonhar, encontramos espaço para
trocarmos arte. Nos únicos dois turnos de folga durante dez dias, encontrávamos
o mesmo tesão em passearmos juntos e tomarmos uma cervejinha no gramado do
“pueblo” que estava perto, como trocávamos sessões de janzu, massagem,
aprendizado de instrumentos e cantos, fotografias, vídeos.
No último dia de viagem recebi um
presente de Diego Muñoz, bailarino e videomaker, que fez algumas imagens do
videodança Sob o Céu do Silêncio,
primeiro videodança que trocamos aqui. Ele me deu uma pulseira branca com os
dizeres: “Elejo leva-la como símbolo de amor, paz e respeito a mim e ao meu
entorno.” E vinham escritas as palavras:
amor+alegria+gratidão+paz+amor+perdão+respeito+vida. É de uma ong que se chama:
demidepiende.org. Diego me disse que estava dando esta pulseira para as pessoas
que ele conhecia que se identificavam pelo desejo de colocar esses princípios no
mundo, para que a gente se reconheça. Voltaram as minhas questões sobre as
comunidades que vão se formando... mas ao mesmo tempo, pensei: “Que lindo! Se é
pra me territorializar ou para ser identificada com alguma comunidade, que seja
com esta!” Fato é: me senti feliz e sigo com minha pulseira pulsando.
Após esse tempo de suspensão,
beleza e leveza, como voltar para um grande centro urbano, como é Fortaleza, e
manter a calma, a gentileza, a delicadeza? Dois dias depois que voltei de
viagem, por exemplo, fui a uma festa na Praia do Futuro, e ao sair de lá, tive
que sobreviver a um tiroteio provocado por dois policiais que saíram brigando
da festa. Um faleceu na nossa frente. Aproximadamente dez disparos foram dados.
Alguns segundos que pareceram horas... Minha vida estava dependendo de uma bala
se encontrar ou não com o meu corpo. Tenho amigos em Fortaleza que moram na
periferia e vivem isso mais de uma vez por semana. Todos os dias penso que
Nostradamus talvez tivesse razão e esse seja realmente o fim do mundo. Estamos
nos exterminando. Reafirmamos sistemas que pensávamos terem caído por terra,
como o darwinismo e nos atiramos a reforçar nossas diferenças e mostrarmos
nossa força. Queremos todos nos empoderarmos. Para que alguém se empodera? Para
demonstrar poder sobre o outro. Toma para si a lógica e o sistema do qual
discordava, reclamava, criticava, abominava e o reproduz apenas invertendo seu
lugar nessa cadeia. Passa de agredido a agressor. Mas o outro também se
empodera. E então é agressor contra agressor. Força com força. Murro com murro.
Grito com grito. Grito é ar das entranhas exposto em som. Mas excesso de vento
mata cacto, lembra? Matamos nossa própria capacidade de resistir.
Porque ninguém discute a
capacidade global de se desempoderar? Porque não nos desempoderamos todos para
começarmos de novo a nos olharmos como seres humanos, e só? Utopia. Sim... a
utopia às vezes me dá alguma força para viver. Porque está no plano dos sonhos.
E ainda não perdi a capacidade de sonhar. Meus sonhos não serão roubados.
Ainda prefiro olhar para os
sorrisos que recebo em Fortaleza. Isso não é negar a violência que nos assola.
Ainda prefiro buscar a força no mar, sem invisibilizar a periferia. Ainda
prefiro acreditar em outros possíveis, sem ignorar a dureza do contexto. Mas
penso, com o fundo de meu coração, que só sairemos desse buraco se construirmos
outros possíveis. E agora, agorinha mesmo, só tenho encontrado estes possíveis
mantendo os sonhos em movimento.
Enfim, minha querida, acho que
finalmente terminei esta carta sem ponto final. Seguimos nos emaranhando na
tentativa de produzirmos flor.
Com afeto, Aninha Mundim.
P.S.1. Para quem quiser ver o
videondaça Sob o Céu do Silêncio
aqui.
P.S.2. Quantos “eus” “eu” disse nessa carta. Fiquei
a me perguntar qual o nível de egocentrismo há nisso. Estaria traindo minha
própria busca pela coletividade? Mas se “eu” traio a mim mesma, “eu” ainda
seria “eu”? E se eu falo de mim a partir do olhar do outro, já não há o outro
em mim? Mas como falar do mundo de uma perspectiva outra que não seja a minha? Enfim,
talvez compartilhar uma experiência que é minha, também torne esta experiência
do outro, do mundo. Como canção a ser composta. Não sei... tenho minhas
dúvidas, até sobre mim mesma.
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